Era uma manhã comum quando os filhos de Dona Helena, já idosa e apaixonada por tecnologia, descobriram que parte da vida dela estava guardada em lugares invisíveis: fotos no Google Drive, músicas compradas no iTunes, um canal monetizado no YouTube e até uma carteira digital com valores expressivos. Ao falecer, surgiu a dúvida: quem herdaria esse patrimônio digital? E mais — seria ele considerado patrimônio de fato?
Esse exemplo fictício reflete uma realidade concreta. Com a digitalização da vida, cada vez mais famílias enfrentam situações em que a herança não se resume a imóveis, veículos ou contas bancárias. Perfis em redes sociais, milhas aéreas, saldos de carteiras virtuais e arquivos em nuvem se transformaram em ativos de relevância econômica e afetiva.
O enquadramento jurídico da herança digital:
O Código Civil (Lei nº 10.406/2002) prevê em seu art. 1.784 que a herança transmite-se, desde logo, aos herdeiros legítimos e testamentários. No entanto, não há no ordenamento brasileiro previsão expressa e detalhada sobre o destino dos bens digitais.
O Superior Tribunal de Justiça já começou a enfrentar casos relacionados à herança digital. Em 2022, por exemplo, o STJ discutiu a legitimidade de familiares para acessar contas de redes sociais e serviços digitais do falecido (REsp 1.800.055/SP, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 08/03/2022). A Corte reconheceu a possibilidade de transmissão dos conteúdos, desde que observada a natureza patrimonial e os direitos de personalidade envolvidos.
Outro ponto sensível envolve testamentos. O art. 1.857 do Código Civil permite que qualquer pessoa disponha de seus bens, inclusive digitais, por meio de testamento. Ou seja, é juridicamente possível prever o destino de contas digitais, senhas e perfis, evitando litígios familiares.
Impactos práticos para famílias e empresas:
A ausência de regulamentação específica gera insegurança. Herdeiros podem enfrentar dificuldades para acessar informações essenciais, como contratos de investimento digital ou até saldos de contas vinculadas a aplicativos.
• Para famílias: a herança digital pode guardar não apenas valor econômico, mas também memória afetiva — fotos, mensagens e vídeos que representam laços emocionais. Sem previsão legal, o acesso pode ser negado pelas plataformas.
• Para empresas familiares: em tempos de negócios digitais, perfis em redes sociais, canais de e-commerce e contas corporativas podem ser ativos estratégicos. A falta de planejamento sucessório compromete a continuidade da atividade.
• Para inventariantes e advogados: cresce a necessidade de levantar não só bens físicos e financeiros, mas também “bens em nuvem”, exigindo perícia técnica e criatividade jurídica.
Caminhos possíveis:
Diante desse cenário, alguns cuidados se tornam cada vez mais urgentes:
1. Testamento digitalizado: incluir no testamento disposições claras sobre contas, senhas e destino de ativos digitais;
2. Planejamento sucessório: prever no inventário extrajudicial cláusulas específicas sobre bens digitais;
3. Diálogo preventivo: famílias podem manter listas seguras de acessos, resguardando a privacidade do titular, mas garantindo continuidade após seu falecimento;
4. Atuação judicial: quando não há acordo, resta ao Judiciário decidir, mas a sobrecarga processual pode atrasar a solução e desgastar ainda mais os herdeiros.
Conclusão:
A herança digital ainda é um campo em construção no Brasil, mas já produz efeitos práticos profundos. Ignorá-la pode gerar disputas familiares, prejuízos financeiros e perda de memórias afetivas. Por isso, o planejamento sucessório, aliado ao uso do testamento e à orientação profissional, torna-se ferramenta indispensável.
Em última análise, assim como cuidamos de imóveis, contas bancárias e investimentos, também é hora de pensar no destino de nossa presença digital.
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Fontes e Referências
• Código Civil (Lei nº 10.406/2002) – arts. 1.784 e 1.857.
• Código de Processo Civil (Lei nº 13.105/2015) – arts. 610 e seguintes (inventário e partilha).
• STJ – REsp 1.800.055/SP – Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 08/03/2022. Disponível em: www.stj.jus.br.
• Conselho Nacional de Justiça (CNJ) – publicações sobre inventário extrajudicial e modernização do direito sucessório.
• Artigos acadêmicos em periódicos de Direito Civil e Sucessões.
